sábado, agosto 12, 2006

Tesouro dos Cortiçais


Calma minha gente! Antes de correrem para os equipamentos de mergulho ou para os simples tubos, para iniciarem a pilhagem, leiam todo o texto. Lembrem-se que nem todos os tesouros são de ouro! No caso dos Cortiçais a riqueza é noutra matéria, conhecimento. E mais, conhecimento na forma de “cacos”!
“O homem tá parvo!” dirão “ Mas que raio de tesouro é conhecimento e como diacho é que o conseguimos através de «cacos»?”
Passo a explicar: primeiro, de acordo com os meus colegas de campanha, eu não tou parvo, eu sou parvo. Depois o facto de não considerar conhecimento um tesouro já entra na área das escolhas de cada um. Por fim, e com muito mais interesse, asseguro que os “cacos” nos podem ensinar muita coisa.
Às peças encontradas, quer pelo achador quer nos trabalhos de 2004, chamo “cacos” pois são-no. Não se encontraram daquelas peças inteiras e bonitas como nos museus, mas simples fragmentos de cerâmica. Embora algumas sejam maiores e mais definidas todas elas estão partidas. O que não é de admirar visto estarem à 2000 anos num sítio que basicamente funciona, em certas alturas, tipo máquina de lavar (como alguns de nós, mergulhadores dos Corticais, puderam constatar em primeira mão).
O que é que estes “cacos” nos podem ensinar? Graças A. M. Dias Diogo sabemos que, os fragmentos recolhidos pelo achador e nos trabalhos 2004, pertencente a ânforas de tipo Haltern 70 (assim chamadas pelas primeiras terem sido descobertas num acampamento romano em Haltern, Sul da Alemanha, em 1909). As ânforas eram contentor cerâmicos de transporte muito usado na Antiguidade e, normalmente, tinham formas tão específicas que só por aí indicavam o que continham e de onde são. Tal como hoje em dia se olharmos para um garrafa de Coca-Cola, mesmo sem rótulo, sabemos a que pertence.
Sabemos Haltern 70 era feita na antiga província romana da Bética ou seja na actual Andaluzia. Quanto ao que levava é uma questão que dá pano para mangas e leva a autênticas batalhas campais entre os estudiosos. Quer dizer a discussão não é tanto sobre o que é que ia nas Haltern 70, sobre isso tem-se quase a certeza que levavam "defructum". Afinal já apareceram Haltern 70 (não nos Corticais mas noutros sítios) que tinham inscrições a dizer basicamente que “sim senhor isto leva «defructum»” (isto em latim). A porca torce o rabo quando é para dizer o que caraças é o "defructum". Uns dizem que é vinho e vinho do bom. Outros dizem que é mosto. Há ainda quem afirme que este producto era usado para conservar azeitonas. Em fim, as teorias são muitas, as provas a favor ou contra ainda são mais.
Uma coisa é certa, o barco vinha da Bética e trazia um produto de algum valor. Para onde ia? Não sabemos, embora este tipo de carregamento tenda a estar associado ao abastecimento de tropas em combate nas terras a Norte. Tal como hoje os americanos no Afeganistão consideram que, já que estão a combater, o mínimo que os seus líderes lhes podem fazer é dar-lhe umas Coca-Colas, também o moral do soldado romano seria melhor agradado com a oferta de produtos que lhe lembrassem casa.
Este é o nosso tesouro, que nos premite ligar com pessoas mortas à 2000 anos.
Até ao meu regresso continuem a navegar!
Vitor Frazão.

terça-feira, agosto 08, 2006

Lavrar o Mar


Disse que cá estaria para dar a conhecer os Cortiçais ao mundo e cá estou! Claro que tudo isto seria mais útil se fosse feito por alguém, realmente, competente. Porém não desesperem ! Em breve os meus colegas de campanha juntar-se-me-ão e, aí sim, poderemos dar alguma dignidade a isto!
Como dar a conhecer os Cortiçais? Já dei algumas dicas sobre a localização e darei mais, assim que a marisqueira que referi "chutar" um patrocínio cá aos amigos.
O que mais se pode dizer para introduzir o tema dos Cortiçais? A lógica ditaria que começasse-mos pelo início. Como é que o sítio foi encontrado? A descoberta foi feita por Luís Santos Jorge, caçador submarino de Peniche, perante quem todos os participantes na campanha se curvam em humilde agradecimento.
Contudo a história da descoberta do sítio arqueológico dos Cortiçais terá de ficar para outro dia, já que espero que seja o próprio achador a contá-la. "Mas porque é que não vais falar com o homem e publicas isso já?" perguntarão. Por que neste momento isso implicaria levantar-me da esplanada. Acabando com a sessão de banhos-de-sol e arruinado um belo dia de praia. Na verdade o simples pensamento de interromper este ócio veraneante é seria um monstruoso crime contra a própria ideia de descanso! Por isso expulso tal raciocínio como se tivesse sido sugerido pelo próprio Demo! Não, a história do achador ficará para outro dia.
Entretanto falemos de outro tema, os primeiros trabalhos nos Cortiçais. A isto se deve o título do texto pois, tal como o terreno tem de ser lavrado antes de ser semeado, o sítio arqueológico tem de ser preparado antes de ser trabalhado. Só assim se pode esperar colher qualquer coisa! No caso dos Cortiçais a preparação consistiu na implantação de spits, pernos de aço inoxidável, normalmente usados por alpinistas. Estes spits são fixos a rochas do fundo marinho, com o auxílio de um berbequim pneumático que funciona com ar comprimido através de uma garrafa de mergulho. A cada perno junta-se um anudo de zinco e uma anilha com a identificação do número do spit.
Porque é que fazemos isto? É simples, contrariamente ao que se mostra nos filmes, os arqueólogos não se limitam a recolher tudo à maluca, para depois enviar para os museus. Os objectos retirados de sítios arqueológicos, em terra ou no Mar, têm de ser posicionados para que, mesmo que passem anos, se saiba onde estiveram. Isto pode servir para vários estudos, como por exemplo, no caso dos Corticais, descobrir onde é que o barco embateu ou como. É neste interpretação que se faz o verdadeiro trabalho arqueológico e não no tirar as peças.
Em terra esta localização é feita por um sistema tipo batalha naval, em que se sabe que dentro da quadrícula, no ponto X e Y do quadrado tal, a não-sei-quantos centímetros de profundidade, esteve a peça qualquer-coisa.
Ora debaixo de água nem sempre é possível colocar uma quadrícula. Por isso o quer se faz é estender-se uma fita métrica de um spit até ao local que se pretende localizar. Fazendo isto a mais dois spits torna-se possível calcular, com pouca margem de erro, o local donde a peça foi levantada. Claro que isto não é tão simples como eu faço parecer, há ainda mais pormenores nas medições e no modo como se processa a informação, mais isso fica para outro dia. Afinal, que raio, já fim bastante trabalho intelectual para um gajo que está na esplanada.
Além da colocação de uma rede de nove spits, os vários mergulhos em Novembro e Dezembro de 2004, também serviram para recolher alguns materiais. Este permitiram, uma vez classificados, dar uma ideia do que se iria encontrar no local em trabalhos futuros. Todos graças ao trabalho desenvolvido sobre a responsabilidade de Jean-Yves Blot (arqueólogo convidado pelo CNANS), com a participação de alguns membros da GEPS (Grupo de Estudo e Pesquisa Subaquática), do próprio achador e de alguns mergulhadores dos Clube Naval de Peniche.
O que foi encontrado nesses trabalhos será o tema da nossa próxima publicação. Até lá saudações do vosso editor de esplanada.

Vitor Frazão