quinta-feira, setembro 14, 2006

Porquê naufrágio?


Desde a criação do blog tenho falado num naufrágio. Ora um naufrágio implica que tenham havido uma qualquer embarcação, nem que fosse uma tábua de engomar com remos. Visto que nós não encontramos sequer vestígios da estrutura do barco, como é que podemos afirmar que ali houve um naufrágio? Afinal o amontoado de fragmentos de ânfora podia indicar, somente, que aquele sítio era usado como lixeira.
Há muitos casos desses, pois quando se compra uma ânfora não se paga o contentor mas a bebida! Tal como cibernauta bebe a cerveja e deita a garrafa fora (ou melhor coloca-a para reciclar – não vão os ecologistas começar já com um escarcéu do caraças) também os Romanos compravam o produto, despejavam-no da ânfora para o dolium (uma espécie de “bilha” descomunal, onde cabe, perfeitamente, uma pessoa) e depois atiravam a bela da Haltern70 para os anjinhos. Não pode ter sido esse o caso dos Cortiçais?
Em princípio não. Para já não é de crer que aquele tenha sido um bom sítio para descarregar barcos, o que ainda tem de ser comprovado ou desmentido. Mas o nosso maior indicador é o facto de ter sido encontrado um tipo de cerâmica específica entre os fragmentos de ânfora, a Terra Sigillata. Esta cerâmica, também ela aparecida aos pedaços, foi o equivalente romano à “Vista Alegre”, ou seja peças de luxo usadas para servir à mesa. Este tipo de bens não era simplesmente deitado fora como as ânforas, por isso é que o seu aparecimento, misturado com as Haltern70, aponta para um naufrágio. Estes pequenos fragmentos de cerâmica avermelhada fina não só nos provam que trabalhamos num naufrágio como nos permite dizer quando é ele se deu. Quer dizer, não diz a data e a hora do acidente, não é como se fosse uma caixa negra! Contudo a sua classificação diz-nos como balizar em termos de anos. O que é bastante bom para uma ciência habituada a trabalhar com séculos quando não milénios! Os “cacos” são uma Terra Sigillata chamada Itálica que é apontada como existente entre 15 a.C. a 15 d.C.
É por estas e por outras que a sua descoberta foi tão efusiva! É difícil esquecer a imagem e o som da nossa amiga e arqueóloga Carla Maricato (senhora de uma gargalha sonora e contagiante, já apelidada de Síndroma de Maricato) quando encontrou o belo do caco. Sim leram bem, o som. Pois juro-lhes que a mulher, debaixo de água, gritou: “Sigillata!!” O mais impressionante é que se ouviu! De modo abafado é certo, tal como se tivesse sido dito por alguém com uma almofada encostada à boca. Posso garantir-lhes que Carla Maricato se virou para outro colega, de “caco” em punho, gritando pelo nome do dito! A resposta a isto? Um simples aceno… No entanto, não se pense que esta falta de entusiasmo demoveu “Carlota”, que logo se vira em busca de um colega que partilhasse do seu entusiasmo!
Eu sei que é mórbido ficar tão contente com as provas dum naufrágio. O que basicamente damos a entender é: “Viva, os gajos lixaram-se contra as rochas!!! Provavelmente tiveram todos mortes horríveis ou traumas para a vida, iupi!!!” Eu sei que pode parecer sádico, mas que querem? Já que aconteceu a desgraça ao menos aproveitemo-la. Nós arqueólogos e simpatizantes somos uma cambada de abutres que vivemos de estudar morte e destruição. Acreditem fazemo-lo com as melhores daquelas coisas de que o Inferno está cheio…

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

É agradável sentir o vosso entusiasmo. Mas pedagogicamente devo advertir para o argumento que esgrimiu e descartou. É que sem restos de embarcação é de facto difícil sustentar a hipótese de naufrágio. Quanto à sigillata, é bom ter aparecido, mas a cronologia sabemos hoje ser bem mais ampla que a que indica. E também surge em contextos social e economicamente pobres, sendo difícil manter hoje essa visão de que se trataria de um artigo de luxo. Mas enfim, força nesse entusiasmo, e não matem a coisa por acharem que já têm respostas para tudo; o que vos devia motivar era a procura de respostas para aquilo que ainda não tem de forma inquestionável: um naufrágio...

5:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É agradável sentir o vosso entusiasmo. Mas pedagogicamente devo advertir para o argumento que esgrimiu e descartou. É que sem restos de embarcação é de facto difícil sustentar a hipótese de naufrágio. Quanto à sigillata, é bom ter aparecido, mas a cronologia sabemos hoje ser bem mais ampla que a que indica. E também surge em contextos social e economicamente pobres, sendo difícil manter hoje essa visão de que se trataria de um artigo de luxo. Mas enfim, força nesse entusiasmo, e não matem a coisa por acharem que já têm respostas para tudo; o que vos devia motivar era a procura de respostas para aquilo que ainda não tem de forma inquestionável: um naufrágio...

5:30 da tarde  

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